4 de dez. de 2023

Venezuela e Guiana: uma disputa de séculos que pode acabar em guerra na fronteira do Brasil

O escritor, colunista e apresentador do BSM, Brás Oscar fez uma excelente análise histórica e geopolítica da questão do Essequibo, um território rico em petróleo e disputado pelos dois países desde o século XIX. 

O Ditador Nicolás Maduro realizou um  plebiscito sobre a guerra neste domingo (3/12).
A República da Guiana e a Venezuela reclamam a posse do território a oeste do Rio Essequibo desde o século XIX, quando Robert Hermann Schomburgk, um explorador alemão a serviço da coroa britânica, delimitou – obviamente a favor do Reino Unido – a fronteira da então colônia da Guiana Britânica com a Venezuela.

Essa fronteira é até hoje chamada de Linha Schomburgk, e é motivo de um dos maiores problemas geopolíticos da história sul americana, ainda sem resolução e, desde o início do ano, foco de uma tensão que pode acabar em guerra na fronteira de ambos os países com o Brasil.

O território em disputa, chamado de Guiana Essequiba, é rico em petróleo e isso é um dos principais motivos para o conflito histórico voltar a ter importância. A Guiana começou recentemente a explorar o potencial petrolífero da região, em parceria com empresas americanas, e o ditador venezuelano Nicolás Maduro não perdeu tempo em anunciar um referendo – que ocorreu neste domingo, 3 de dezembro – sobre novas políticas para área, que servirão para justificar uma anexação.

Por mais que a primeira impressão que temos ao receber essa notícia é de que Maduro está criando um pretexto para dizer que a Guiana Essequiba deveria ser parte da Venezuela, ao olhar com atenção os detalhes históricos, a situação é mais complicada do que parece.

Entenda a história da região:

Disputa entre impérios
Desde o século XVI não existia consenso entre Espanha, Império Britânico e Holanda quanto às fronteiras exatas entre suas colônias no norte da América do Sul. As três potências eram rivais, mas nunca houve uma discussão profunda à época sobre uma delimitação precisa dos territórios já que havia pouquíssimo ou nenhum desenvolvimento na região.

Apenas em 1840 os britânicos passam a se preocupar com a questão, por conta do Tratado Anglo-Holandês de 1814. O acordo, que havia sido assinado 26 anos antes para sanar as disputas territoriais oriundas das guerras napoleônicas, gerou mais discussões, outro tratado complementar em 1824 e, finalmente, com o processo de independência da Venezuela ao longo da década de 1830, forçou uma ação do Reino Unido para definir os limites territoriais.
Resumidamente, o Reino Unido se comprometia a devolver para a Holanda as colônias tomadas a partir de janeiro de 1803, com exceção do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, e de três assentamentos na América do Sul chamados Demerara, Berbice e Essequibo.

Esses três assentamentos sul-americanos passaram a formar a nova colônia da Guiana Britânica. O maior dos três, Essequibo, havia sido tomado da Espanha pela Holanda, e a Espanha exigia que a possessão voltasse para o dono original, a coroa espanhola, e não para a Holanda, muito menos que permanecesse com o Reino Unido.

Empurrando a cerca do vizinho
Para complicar mais a situação, o Essequibo era parte da Capitania Geral da Venezuela, colônia espanhola que já estava em processo de independência junto com as demais capitanias espanholas, formando a Grã-Colômbia.

Para não correr o risco de ver o novo país em emancipação reclamar para si o antigo território do Essequibo, o Reino Unido tratou de criar uma expedição liderada pelo explorador alemão Robert Hermann Schomburgk para dizer até onde iria a fronteira da colônia britânica. Schomburgk definiu que a toda a área que se estendia após a margem oeste do rio Essequibo até a margem leste do rio Cuyúni eram parte da Guiana Inglesa.

Essa cartografia traçada por Schomburgk engolia para dentro dos domínios ingleses – propositalmente – todo o território do Essequibo espanhol que era parte da, agora independente, Venezuela.

Há que se imaginar que falamos de um tempo quem mapas eram feitos sem satélite, sem GPS, e com técnicas de referenciamento baseada na observação de cursos d’água, montanhas com algum auxílio de astronomia, numa área de mata tropical fechada, sem estradas e praticamente sem qualquer construção civil. Portanto, não era algo tão absurdo que os grandes impérios europeus conseguissem empurrar para lá ou para cá vários quilômetros de fronteira nas colônias, muitas vezes utilizando-se de manobras ilegais.

O Laudo Arbitral de Paris
Em fevereiro de 1897 a Venezuela apelou – olha a ironia do destino – aos Estados Unidos para que este intercedesse em seu favor junto ao Reino Unido.

Os americanos convenceram os britânicos a firmar o Tratado de Washington com a Venezuela. No acordo, os querelantes se comprometiam a resolver o problema mediante uma arbitragem internacional. 
A arbitragem foi feita por dois grupos de peritos representando para cada uma das partes e mais um terceiro perito neutro, e partir disso foi firmado o Laudo de Paris de 1899, que deu uma sentença a favor do Reino Unido.

A Maracutaia no Laudo de Paris
A Venezuela, já no Tratado de Washington, teve que aceitar ser representada por juristas dos Estados Unidos, entre eles os juristas Melville Weston Fuller e David Josiah Brewer. A parte neutra foi a Rússia, representada pelo jurista Fiódor Martens.

Já no momento da publicação do laudo os venezuelanos protestaram contra o resultado, alegando que a sentença não apresentava fundamentos jurídicos, mas o acataram. No entanto, após 50 anos, a Venezuela encontrou algo sólido para apoiar as suas reivindicações.
O motivo foi a publicação, em 1949, do artigo The Venezuela-British Guiana Boundary Dispute (A disputa de fronteira Venezuela-Guiana Inglesa) no American Journal of International Law, de autoria do jurista norte-americano Otto Schoenrich, sobre um acordo de bastidores entre a Rússia e a Grã-Bretanha no Laudo Arbitral de Paris.
O artigo descreve o seguinte: Schoenrich teve acesso a um documento chamado Memorando de Severo Mallet-Prevost. Mallet-Prevost foi um jurista respeitado em sua época e atuou como Secretário Oficial da delegação EUA/Venezuela no Tribunal de Arbitragem em questão, e o memorando – que trata-se de um relato testemunhal – foi escrito por ele em 1944, com ordens de ser publicado somente após sua morte.

Mallet-Prevost conta que testemunhou, durante sua atuação na arbitragem do caso da Venezuela, um acordo político entre a Rússia e a Grã-Bretanha. Martens, o jurista russo, teria visitado a Inglaterra acompanhado dos dois árbitros britânicos no verão de 1899 para propor aos dois juízes americanos a escolha entre aceitar uma sentença unânime dando o Essequibo aos britânicos ou uma decisão majoritária (3 x 2, com o voto do russo e dos britânicos) ainda mais desfavorável à Venezuela: seguir inteiramente a Linha Schomburgk original e dar toda a foz do rio Orinoco aos britânicos.
Mallet-Prevost relata em seu testemunho que os juízes americanos (que representavam a Venezuela) e os advogados venezuelanos estavam desesperados com a situação, mas acabaram por concordar com a chantagem para evitar privar a Venezuela de um território valioso ao qual tinha direito.

O Acordo de Genebra
Com base nas provas levantadas pelo jurista Otto Schoenrich, a Venezuela recorreu à ONU em 1966 para pedir a anulação do Laudo Arbitral de Paris.

O Reino Unido aceitou discutir o assunto. No fim, foi firmado o acordo internacional chamado de Acordo de Genebra de 1966.
O acordo, que está vigente até hoje, não põe em xeque a autoridade do governo da Guiana sobre o Essequibo, mas estabelece a salvaguarda dos direitos de soberania venezuelana sobre a região.

O texto registra que a Venezuela reconhece que o Laudo Arbitrário de Paris de 1899 é nulo. Porém, isso não significa qua ONU o reconhece dessa forma.

A Guiana assinou o acordo, o que significa, na prática, o reconhecimento da reivindicação da Venezuela e dos motivos alegados para a inconformidade do laudo de 1899.
Por fim, a única coisa que fica realmente determinada pelo Acordo é a criação de uma Comissão Mista de Limites que teria um prazo de 4 anos para decidir qual a solução da disputa.

O prazo venceu em 1970, após 16 reuniões da Comissão Mista, sem qualquer solução. 

Na sequência, foi assinado o tratado chamado de Protocolo do Porto de Espanha – levando o nome da capital de Trinidad e Tobago, onde foi redigido e assinado – determinando que haveria uma pausa de 12 anos na disputa, sob a alegação de buscar um prazo razoável para encontrar uma solução.

Após os 12 anos, já em 1982, a câmara legislativa da Venezuela decidiu em votação que não iria ratificar o Protocolo e voltaria a exigir o que foi estabelecido em Genebra.

Vale observar que a antiga Guiana Inglesa tornou-se independente justamente em 1966, porém, no acordo de reconhecimento de sua independência assinado junto ao Reino Unido, o novo governo da, agora, República da Guiana ratificou o Acordo de Genebra.

Contexto atual
Em 2015 a Guiana anunciou a descoberta de campos petrolíferos no Essequibo e abriu negociações para exploração com a ExxonMobil, gigante americana do setor.

A reserva extraída pela ExxonMobil é estimada em 11 bilhões de barris de petróleos. Isso é aproximadamente 75% de toda reserva brasileira, e já é maior que as reservas do Kuwait e dos Emirados Árabes Unidos.

É inegável que a injeção de capital estrangeiro está trazendo algum desenvolvimento para a região, mas é muito rasa a leitura feita por quase todos os analistas brasileiros de que o olho de Maduro voltou-se para a Guiana por mera questão de recursos naturais e financeiros.

Podemos entender o problema, vamos pontuar as seguintes questões:
EUA usando a Guiana como proxy
Em 6 de julho de 2023, época em que a impressionante produção de petróleo na Guiana tornou-se notícia nas publicações de economia, o secretário de estado dos EUA, Antony Blinken, visitou a Guiana e proferiu um discurso oficial para a imprensa durante seu encontro com o presidente guianense Ifraam Ali.

Na fala do secretário ficou claro o interesse americano em coordenar parcerias com o país na área de energia e segurança. Ou seja, petróleo e armas.

Veja alguns trechos do discurso de Blinken na conferência de imprensa em Georgetown, capital da Guiana:

“Discutimos como podemos melhorar nossa própria cooperação em uma variedade de questões, incluindo segurança energética e redução da violência.”

“Os Estados Unidos apreciam o papel cada vez mais significativo que a Guiana está desempenhando na abordagem de questões regionais.”

“Guiana será em breve o país com maior produção per capita de petróleo do mundo, mas também é líder em conservação florestal.”

“A Guiana também é um importante parceiro de segurança regional. Agradecemos à Guiana por sediar o próximo exercício Tradewinds do SouthCom. Isso fortalecerá a capacidade do Caribe de combater organizações criminosas transnacionais e outras ameaças.”

Os exercícios Tradewinds a que Blinken se refere são exercícios militares coordenados pelas forças armadas americanas. A inclusão da Guiana não é apenas pelo fato do país estar prestes a se tornar o maior produtor mundial de petróleo, mas justamente por conta das “questões regionais” – destacada na citação – e do problema do narcotráfico internacional que o secretário fala em outra parte do discurso. Para bom entendedor, a Venezuela e o narcogoverno de Maduro.

Maduro aprendendo com Putin como se faz
Nicolás Maduro anunciou em outubro que faria um referendo para decidir sobre várias questões relacionadas ao Essequibo. A consulta foi neste domingo, 3 de dezembro.

Um dos principais itens que foram votados é a atribuição de cidadania venezuelana para todos que vivem no Essequibo e a queiram solicitar
Na prática, Maduro irá criar uma máquina de fabricar venezuelanos.
Como não há o mínimo grau de confiabilidade nas instituições venezuelanas, é muito provável que o resultado do referendo já seja carta marcada. Mas o que está por trás da ideia de “fabricar venezuelanos” no Essequibo é algo muito semelhante ao que Putin fez na Ucrânia: criar artificialmente um movimento nacionalista num território fronteiriço e depois acusar o governo vizinho de estar impedindo a autodeterminação dos povos.

Maduro irá também invocar todo o contexto histórico do Essequibo para justificar a invasão.

Mas, afinal, de quem é o Essequibo?
Nesse ponto, até a opositora de Maduro, María Corina Machado, concorda com ele. 
A maioria dos venezuelanos entendem que, historicamente a região sempre foi parte da Venezuela e que o país sempre foi passado para trás pelos britânicos ao longo da história.

A discordância é quanto ao momento. María Corina acusa Maduro de estar fazendo isso no pior momento e da pior forma.

O grande problema é que, por mais que abundem evidências na história do direito internacional que favoreçam a Venezuela, ninguém exceto Rússia, China e as nações em seus polos diretos de influência, como o Irã, apoiariam ou justificariam um ditador criminoso com Nicolás Maduro anexar uma região que corresponde a 74% do território do país vizinho.

O outro problema é que, a despeito de todo o trabalho burocrático nas cortes internacionais desde o século XIX até hoje, a Venezuela pouco ou nada fez em relação ao desenvolvimento do Essequibo. A região, de facto, sempre foi governada pela Guiana desde sua independência e não há indícios que a pequena população local se considere venezuelana.
A Guiana solicitou uma audiência na Corte Internacional de Justiça, que vem examinando o caso desde 2020, e pediu que o tribunal determinasse à Venezuela que cancele o referendo. A corte não vetou o plebiscito de Maduro, mas emitiu decisão dizendo que a Venezuela não pode anexar o Essequibo.

A pressa de Maduro se agravou com a Guiana já defendendo abertamente a opção de estabelecer bases militares com apoio americano ao longo do Essequibo e já anunciou mais uma visita do governo dos EUA, dessa vez, de funcionários do Departamento da Defesa.
Biden pode estar usando a situação para garantir uma maneira de conseguir, através da Guiana, derrubar o regime de Maduro
A prisão ou execução de Maduro conduzida através de uma guerra para defender a democracia de uma nação aliada e combater uma ditadura que é comandada pelo maior traficante do mundo seria um trunfo para manter o governo na mão dos democratas na próxima eleição, mas também seria uma vitória a longo prazo para os EUA, já que tal qual os americanos usam a Guiana como proxy, Rússia e China também usam a Venezuela do mesmo modo na geopolítica da região.

E o Brasil no meio disso
O exército brasileiro passou o ano fazendo de conta que o problema nem se passava na borda da nossa fronteira, mas na quinta-feira, 30 de novembro, emitiu uma nota tímida dizendo aumentou a presença militar na região de fronteira no Norte do país, próximo a Venezuela e Guiana. E isso, na verdade, em atendimento ao pedido do senador Hiran Gonçalves (PP-RR).

“O Ministério da Defesa tem acompanhado a situação. As ações de defesa têm sido intensificadas na região da fronteira ao Norte do país, promovendo maior presença militar”, informou oficialmente o ministro da Defesa, José Múcio.

Biden, Putin e Xi, os senhores da guerra, não brincam em serviço, e precisam mover as peças para ajustarem suas diferenças. E, nesse tabuleiro, o Brasil pode ser uma peça importante.

A China provavelmente irá pressionar Lula a manter algum tipo de neutralidade de fachada, que na verdade consiste em não atrapalhar e não votar contra a Venezuela em qualquer tentativa de sanção das Nações Unidas e não permitir que o legislativo brasileiro passe qualquer medida contra Maduro.

A Colômbia pode ser um caminho que os americanos irão buscar, mas Biden também deve tentar uma aproximação com o Brasil, já que é o procedimento tradicional americano, ao levar sua pax romana para uma zona de conflito, colocar ali um xerife regional para garantir a ordem e o domínio da zona de influência política, e o Brasil é o país mais importante dessa região.

As possibilidades de um desastre para nós com uma guerra se avizinhando em nossas fronteiras, justamente envolvendo a Venezuela e em pleno governo Lula, são imensas, tanto em termos políticos quanto econômicos.

O que fica claro, porém, é que o mundo pós-covid se assemelha cada vez mais a um cenário simultaneamente de pós-guerra e pré-guerra, numa constante tensão, com os donos do mundo tomando fôlego para um próximo salto antes do mergulho.

Leia esta matéria na íntegra aqui:
https://brasilsemmedo.com/venezuela-e-guiana-uma-disputa-de-seculos-que-pode-acabar-em-guerra-na-fronteira-do-brasil/