Longa vida a PC Siqueira. Assim como um rei, ele simboliza o papel de ser o primeiro e o último de uma era.
Começou como youtuber despretensioso, falando mal de James Cameron, terminou como suicida, matando-se na frente da namorada.
Este ato hediondo me lembrou de Johann Wolfgang Goethe, o autor de Werther, romance alemão do século XVIII, cujo personagem-título cometeu o mesmo tipo de atitude tresloucada e, na vida real, provocou uma onda de suicídios por toda a Europa. Foi uma verdadeira peste: milhares de jovens resolveram imitar o pobre-diabo que se apaixonou pela recatada Carlota (hoje alguém ainda se apaixona por mulheres chamadas Carlota?). A palavra-chave aqui é imitar. Goethe - que se tornou uma celebridade por causa do escândalo provocado pelo livro (será que ele foi o primeiro influencer?) - sabia muito bem o que era a imitação própria ao comportamento humano.
Ele entendia que isto se devia ao desejo - o que me faz lembrar René Girard, o francês que elaborou uma teoria monomaníaca chamada “desejo mimético” (somente os franceses são capazes disso). A ideia consiste no seguinte: você não deseja por si mesmo e sim sempre por meio do outro. Este outro guia seus gostos, suas emoções, suas escolhas, sempre de forma inconsciente. Chega um momento em que este outro se torna também um obstáculo - e você passa a querer destruí-lo (obviamente, o outro pode ter o mesmo intento em relação à sua pessoa). Isso cria um mecanismo de desejo triangular que cresce de forma exponencial, até se transformar em um desejo metafísico, no qual o outro (ou você, leitor) fica completamente obcecado pelo obstáculo que cativou - e pretende arruiná-lo, em geral por meio de um ritual que substitua a violência (nos nossos tempos, o tal do “cancelamento”).
Como podem perceber, de certa forma toda a cultura humana se baseia neste tipo de comportamento, que molda guerras, conflitos, demissões em massa, linchamentos públicos, um vasto etecétra. Não seria diferente com o rei dos influenciadores, PC Siqueira. Que está morto, mas também vivo. Como um futuro Werther, Siqueira colaborou com uma máquina de linchamento - a dos influenciadores de esquerda - e foi destruído por outra - a dos influenciadores de direita. Foi capturado pelo próprio desejo mimético que incentivou nos outros.
O problema é que, como Goethe, o qual evitou ver o monstro que ajudou a criar, nunca assumiu a responsabilidade por sua própria destruição. Semelhante a Werther, quis jogar a culpa no objeto amado, matando-se na frente da namorada (que não se chamava Carlota). Incentivado pelas pessoas que o imitavam e também queriam devorá-lo por causa do seu súbito sucesso, PC Siqueira preferiu se ver como uma eterna vítima, o eterno imolado na máquina macabra do desejo metafísico. E, sim, influenciadores, mas sobretudo a imprensa. Para ela, PC Siqueira era o monarca do YouTube. O pioneiro.
Contudo, também o transformou em um tirano, que, para se manter no poder, modificou o próprio corpo, consertou suas falhas anatômicas e transformou a sua pele em um ritual pagão de sacrifício, com inúmeras tatuagens percorrendo sua frágil constituição. Esta metamorfose também me fez recordar do belo filme Saltburn, recentemente lançado (e disponível na Amazon Prime Video), dirigido por uma mulher, Emerald Ferrell. O longa conta a história de Oliver Quick (Berry Keough), um zé-mané que se vê obcecado por um menino rico e bonito, Felix Catton (Jacob Elordi). O jornalismo cultural (sempre ele) interpretou a obra como uma ode ao mundo queer. Não é nada disso: é uma reflexão satírica, feita ao estilo Evelyn Waugh (pesquisem, leitores), justamente a respeito do desejo metafísico. Oliver não apenas pretende possuir a existência de Felix, com sua mansão e família aristocráticas. Ele pretende ser o próprio Felix.
O mesmo aconteceu com o universo dos influenciadores brasileiros em relação a PC Siqueira. Todos desejavam ser ele, de uma forma ou outra, por meio do amor ou do ódio. E Siqueira adorava isso (não à toa, a tia dele disse ao Correio Brasiliense que um dos motivos pelo qual PC estava em depressão severa era porque “não estava mais na mídia”). Claro que ele não era um Apolo como o Felix Catton de Jacob Elordi (que também interpretou ninguém menos 3 ser um Apolo. E aí foi o motivo da sua desgraça. Em uma das cenas marcantes de Saltburn, há uma morte que ocorre no meio de um labirinto, próxima da estátua de um Minotauro (todo mundo sabe da história grega do labirinto e do Minotauro, certo? Se não, Google is your best friend). Sim, trata-se de um sacrifício, feito de maneira horripilante, ao contrário do “cancelamento” virtual das redes sociais. Mas é também um paralelo ao que aconteceu com PC Siqueira. Todavia, há uma diferença: ele era, ao mesmo tempo, o labirinto e o Minotauro. O youtuber caçou e foi caçado - e não havia nenhum fio de Ariadne para guiá-lo. Após seu suicídio, tanto o mundo dos influenciadores como o mundo político acreditam que é necessária uma regulação jurídica nas redes sociais, para impedir que futuros Werthers aconteçam.
O que essas pessoas ainda não perceberam é que a morte de PC Siqueira é apenas mais um episódio em uma longa história de violência que dura desde o início dos tempos - e que irá continuar enquanto a raça humana permanecer na sua arrogância de fingir ser uma eterna vítima. Na tristeza que marca esse fim trágico, a imprensa continuará a alimentar a máquina satânica do desejo metafísico em todos nós, ajudando na criação de outros Werthers, até o momento em que finalmente alguém irá decretar o veredito de que o rei morreu, pois ele já estava podre por dentro há muito tempo.
#olabirintodaloucura
Shared by Diogo Mainardi